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Foto do escritorGreicy Guimarães

Pornografia de vingança


Chiara Spadaccini de Teffé, doutoranda e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, escreveu um artigo, publicado em 2019, sobre a exposição não consentida de imagens íntimas e como o direito pode proteger as mulheres. O intuito foi de analisar as situações de divulgação não autorizada de imagens íntimas na internet, sobretudo a situação chamada de “pornografia de vingança” e o impacto dessa prática sobre as mulheres, tendo como pressuposto a autonomia existencial e o consentimento para a exposição de conteúdo íntimo. Assim, mais uma vez, optei por recortar trechos do artigo para retirar a carga acadêmica do conteúdo e tentar montar um texto mais conciso, compreensível e com informações de utilidade pública para o senso comum.

A exposição de corpos e a expressão da sexualidade por meio de vídeos e fotos caseiros compõem as novas manifestações do ser humano, incrementadas pela facilidade de acesso a câmeras e a internet. Mas, se, por um lado, essa prática pode estimular o desejo sexual das partes, por outro, pode gerar sérios riscos à intimidade e à imagem do(s) retratado(s). Ainda que essa exposição reflita um aspecto da autonomia existencial da pessoa, sendo inclusive um instrumento contra o machismo e a heteronormatividade, precauções devem ser adotadas para se proteger da exposição indevida por terceiros que tiveram acesso a esse material por meio de uma relação de confiança. Nos últimos anos, a divulgação não autorizada de imagens íntimas e cenas de nudez vem ocorrendo de forma cada vez mais frequente e em diversas plataformas, como Facebook, Whatsapp, entre outros.


A divulgação não autorizada de conteúdo íntimo pode ocorrer por vários motivos e por diversas pessoas. Há quem entenda que essa divulgação enquanto gênero deveria ser chamada de “exposição pornográfica não consentida”. Essa expressão representaria a disseminação não autorizada de imagem com nudez total ou parcial ou de mídias que retratassem ato sexual, ou seja, ela compreenderia a distribuição de imagens com conteúdo sexual de um determinado indivíduo sem o seu consentimento. O termo incluiria tanto as imagens originalmente obtidas sem consentimento quanto as imagens consensualmente obtidas dentro do contexto de um relacionamento íntimo.

A pornografia da vingança (revenge porn) seria então uma espécie de exposição não autorizada de imagem íntima, em razão de suas características e dos sujeitos envolvidos. Define-se tal situação como divulgação sem autorização dos retratados, em quaisquer ferramentas da rede, de fotos e/ou vídeos com cenas íntimas, nudez ou prática de ato sexual, que foram registrados ou enviados em confiança ao parceiro(a). O objetivo é colocar a pessoa exposta numa situação constrangedora e embaraçosa diante de amigos, da família, de colegas ou de determinado grupo de pessoas. Na maioria dos casos, o intuito do ofensor é se vingar de alguém que feriu seus sentimentos ou terminou um relacionamento. A lesão aos direitos da personalidade da vítima é evidente nesse caso, principalmente a sua privacidade, imagem e honra. Também se define “vingança pornográfica” como distribuição/publicação não autorizada de imagens de nus em fotografias e/ou vídeos sexualmente explícitos; a publicação de áudios de conteúdo erótico também pode se encaixar nessa terminologia.


É importante ressaltar que o consentimento é contextual e deve ser interpretado de forma restrita, o que significa que o consentimento que uma pessoa dá para alguém de sua confiança captar ou receber uma imagem sua com conteúdo íntimo não se estende, como regra, para que a pessoa possa compartilhar essas imagens com terceiros.


A preocupação com o tema assume especial relevância diante do aumento do número de vítimas da pornografia de vingança, que, na maioria, são mulheres. Condutas lesivas como essa podem ter desfechos mais trágicos, como, por exemplo, já noticiado, o suicídio de jovens em razão da divulgação de seus vídeos íntimos em redes sociais. É lamentável que, em pleno século XXI, expressar sua sexualidade por meio de uma foto/vídeo ainda seja motivo para a sociedade discriminar e julgar mulheres. Como afirma Simone de Beauvoir, cobra-se da mulher, no que diz respeito a sua sexualidade, uma postura em que ela deve permanecer intocada como um ídolo, mas também deve se dispor a atender os desejos daquele a quem ela é supostamente subordinada, o homem, como uma serva.


O Projeto Vazou buscou colher essas informações a partir das experiências das vítimas dos vazamentos não consentidos, com o objetivo de concentrar informações que podem vir a constituir uma referência para pesquisas, uma provocação para discussões e um incentivo ao aprendizado. O resultado da pesquisa encontra-se resumido aqui.

Alguns chegam a afirmar que a mulher que divulgou ou posou para as imagens teria cometido uma grave violação à moralidade. Esse tipo de argumentação aproxima-se do slut shaming: ato de estigmatizar uma mulher por se envolver em comportamentos considerados promíscuos ou sexualmente provocantes. Visa-se induzir a mulher a sentir-se culpada ou inferior devido à prática de certos comportamentos sexuais que estariam em desacordo com as expectativas ditas tradicionais de seu gênero. Claramente uma discriminação de gênero, cuja lógica deve ser questionada.

Vale também trazer à tona o debate sobre deepfakes e dos vídeos pornográficos falsos envolvendo mulheres. Deepfake é o nome dado a vídeos onde há manipulação da realidade por meio de tecnologia. Neles ocorre a troca dos rostos das pessoas, uma sobreposição, com sincronização de movimentos labiais, mudança de voz e reprodução de expressões. A partir de fotos de uma mesma pessoa, a máquina aprende suas expressões e pode sobrepô-las as de outra. Contudo há um uso perverso dessa tecnologia para difamar e disseminar mentiras, tanto no âmbito político quanto para promover violência contra mulheres. Além de mulheres comuns, algumas famosas já foram vitimadas por este tipo de conteúdo: Scarlett Johansson, Maisie Williams, Taylor Swift, Aubrey Plaza, Michele Obama e Gal Gadot. É possível identificar a falsidade de um vídeo por meio de tecnologia de checagem de imagem e voz. Para tanto, é importante disseminar a informação de que esse tipo de adulteração existe e que, portanto, é preciso checar cuidadosamente a origem desse tipo de conteúdo, além de denunciar esses conteúdos lesivos.


A partir da identificação do ofensor, ele deverá compensar a vítima por danos morais e se abster de realizar qualquer ação que aumente a extensão do dano ou que provoque novos danos. Diante da complexidade dessas situações, a análise das providências cabíveis, inclusive jurídicas, deve ser feita caso a caso considerando as especificidades do fato, a forma e o meio de exposição das imagens, as pessoas envolvidas, o grau de culpa do ofensor e a extensão do dano. Além da reparação jurídica, a vítima pode requerer a exclusão do conteúdo íntimo indevido diretamente a quem publicou o material e/ou o provedor de aplicações de internet responsável pelo local onde o material foi disponibilizado, nesse caso, sem necessidade de ação judicial. A vítima pode pedir a remoção do conteúdo íntimo indevido diretamente ao provedor por meio de canais para notificação e denúncia disponibilizados pela própria plataforma.


Importante destacar que há possibilidade de responsabilização jurídica de quem compartilha ou repassa conteúdo íntimo não autorizado de terceiros, pois o compartilhamento indevido aumenta a extensão do dano causado a vítima.


Numa situação de exposição indevida, recomenda-se que a vítima preserve todas as mensagens, imagens e publicações recebidas, tire “prints” de tudo o que for divulgado, devendo também registrar cada URL específica e a data de acesso ao conteúdo indevido. Caso algum conhecido da vítima receba as imagens íntimas compartilhadas indevidamente, ele deverá armazenar o conteúdo e registrar o canal por onde ele foi transmitido, de forma a ampliar o conjunto de provas a ser utilizado pela vítima. Se houver dúvida ou se for difícil provar a real identidade do ofensor, a vítima poderá requerer judicialmente o endereço de IP (internet protocol) utilizado pelo ofensor ao provedor de aplicações de internet, bem como outras informações que ele tenha em razão da relação estabelecida entre as partes. Com o IP, o provedor de conexão deverá ser oficiado para informar quem utilizou o número, disponibilizando os dados cadastrais do titular da conexão e seus registros, na forma do art. 22 do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14). O Marco Civil da Internet também previu possibilidades de responsabilidade civil do provedor de aplicações de internet por danos provenientes da exposição não consentida de imagens íntimas nas situações específicas nela estabelecidas (conteúdos gerados por terceiros em sua plataforma).


No âmbito penal, quando a vítima de pornografia de vingança for menor de idade, há tipificação do crime no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90), nos artigos 241-A a 241-E, capaz de englobar a conduta do ofensor. Até parte do ano de 2018, não havia crime específico no Código Penal para punir a prática de pornografia de vingança e demais divulgações não consentidas de imagens íntimas de terceiros, de forma que as condutas lesivas acabavam sendo enquadradas como um crime contra a honra (injúria ou difamação) ou, dependendo da configuração do caso, em crimes como ameaça, extorsão ou estupro. Essa situação mudou após o acréscimo no Código Penal de dois crimes específicos (arts. 216-B e 218-C do CP): registro não autorizado da intimidade sexual (incluído pela Lei n. 13.772/18) e divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia (incluído pela Lei 13.718/18).




Ainda há possibilidade de combinação desses crimes com outros presentes em leis especiais, como a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), em razão da situação de violência sofrida pela mulher.


O último tópico do artigo dedica-se a expor um importante debate sobre a desindexação de conteúdos por provedores de busca, o direito ao esquecimento, a polêmica sobre apagamento e desindexação de conteúdos dotados de interesse público e socialmente relevantes e a proteção de informações íntimas sem interesse coletivo trazendo ponderações sobre os conflitos que envolvem essas situações.


O desfecho do artigo é que a autonomia corporal e a liberdade sexual caminham juntos, devendo ser incentivadas e não reprimidas por terceiros que, deliberadamente, optam por divulgar indevidamente imagens íntimas e causar danos aos envolvidos. Assim, o direito deve ser utilizado como ferramenta de proteção da mulher dispondo de mecanismos para punir o seu ofensor e reparar os danos causados pela exposição não consentida de imagens íntimas. O consentimento é a base fundamental da relação, devendo as escolhas da mulher serem respeitadas e buscar sempre preservar sua identidade e promover sua dignidade.


*Este texto foi integralmente produzido a partir do artigo: TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. “Exposição Não Consentida De Imagens Íntimas: Como o Direito Pode Proteger as Mulheres?” Responsabilidade Civil: Novos Riscos, 2019. Editora Foco.

*Na construção desse texto, fez-se uso de transcrições, de simplificações e de generalizações do artigo original.


Para saber mais:


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1 Comment


Chiara de Teffé
Chiara de Teffé
Jun 29, 2021

Bom dia!

Achei interessante a sua abordagem dentro do tema. Quando escrevi o artigo, busquei que ele fosse útil para as mulheres que sofrem violência e divulgação não autorizada de imagens íntimas. Obrigada por divulgar o material. A íntegra dele está aqui: https://www.academia.edu/40869839/Exposi%C3%A7%C3%A3o_n%C3%A3o_consentida_de_imagens_%C3%ADntimas_como_o_Direito_pode_proteger_as_mulheres


Abraços. Chiara de Teffé

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