Foi super difícil saber qual assunto escrever no meu primeiro post. Não por falta de opções. Pelo contrário. São tantas que foi difícil saber qual delas escolher. Depois de refletir bastante, achei importante escrever sobre os marcos na legislação no Brasil dos direitos das mulheres. São tão recentes que até assustam... e mostram a fragilidade que nos encontramos e como ainda temos um longo caminho a percorrer em busca da tão sonhada igualdade.
Desde a chegada dos portugueses à costa brasileira, a instalação das plantações de cana de açúcar e o tráfico de milhões de escravizados para trabalhar nos engenhos que se espalharam pelo litoral, as mulheres - pobres ou ricas - possuíam um papel: fazer o trabalho de base para o edifício familiar – cuidar da casa, educar os filhos segundo os preceitos cristãos, ensinar-lhes as primeiras letras e atividades, obedecer e ajudar o marido. Ser, enfim, a “santa mãezinha”. Se não o fizesse, seria confundida com um “diabo doméstico”. Afinal, sermões difundiam a ideia de que a mulher podia ser perigosa, mentirosa e falsa como uma serpente. O modelo ideal era Nossa Senhora, modelo de pudor, severidade e castidade.(Del Priore, 2013)
A legislação portuguesa trazida para o Brasil era constituída pelas Ordenações Filipinas, composta por leis compiladas em Livros por ordem de D. Felipe I, e vigorou no país até a publicação do antigo Código Civil, em 1916.
Até pouco mais de 100 anos, nós mulheres brasileiras, não podíamos praticar qualquer ato civil. As mulheres estavam sujeitas ao poder disciplinar do pai ou marido, assim, constava da parte criminal das Ordenações Filipinas que eram isentos de pena aqueles que ferissem as mulheres com pau ou pedra, bem como aqueles que castigassem suas mulheres, desde que moderadamente (Livro V, Título 36, § 1º). Os homens tinham também o direito de matar suas mulheres quando encontradas em adultério, sendo desnecessária prova austera; bastava que houvesse rumores públicos (RODRIGUES, 2003).
Após quase 350 anos de vigência das Ordenações Filipinas no Brasil, o Código Criminal de 1830 afasta parte dessas normas: o adultério cometido pela mulher casada seria crime em qualquer circunstância. No entanto, para o homem casado, apenas constituiria crime se o relacionamento adulterino fosse estável e público. Segundo juristas do Brasil Império, era patente o caráter de maior gravidade e maior reprovabilidade da conduta da mulher, quando se tratava de adultério, tanto na esfera penal quanto na cível.
Em 1916 é publicado o Código Civil Brasileiro, deixando para trás as Ordenações Filipinas. Ele manteve os princípios conservadores deixando o homem como chefe da sociedade conjugal. Em seu artigo 380 dá ao homem o exercício do pátrio poder permitindo tal exercício a mulher apenas na falta ou impedimento do marido.
A discriminação do código culminou com o artigo 240 que definitivamente colocou a mulher em situação hierárquica completamente inferior ao homem: "A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família."
Observa-se, ainda, que o artigo 242 restringia a pratica de determinados atos da mulher sem a autorização do marido, como por exemplo: Aceitar ou repudiar herança ou legado; Exercer profissão e Contrair obrigações.
Com o Código Eleitoral de 1932 surgiu um avanço nos direitos da mulher quando permitiu à mulher o exercício do voto. Entretanto, a conquista não foi completa. O Código permitia apenas que mulheres casadas (com autorização do marido), viúvas e solteiras com renda própria pudessem votar. Em 1934 as restrições ao pleno exercício do voto feminino foram eliminadas no Código Eleitoral e em 1946, a obrigatoriedade do voto foi estendida às mulheres.
Em 1985, outra barreira foi superada em relação aos direitos políticos das mulheres: o voto do analfabeto. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na década de 1980, 27,1% das mulheres adultas eram analfabetas.
As mulheres votaram pela primeira vez em eleição nacional em 1933
Fonte: Agência Câmara de Notícias / Imagem: FGV/CPDOC
O Estatuto da Mulher Casada conferiu uma emancipação parcial à mulher, concedendo-lhe sua plena capacidade e atribuindo-lhe a condição de colaboradora na administração da família. Apesar do caráter conservador e patriarcal da sociedade na época, o marido deixou de ser o chefe absoluto da sociedade conjugal. Desde então, a mulher passou a ter permissão para trabalhar sem precisar de autorização do marido. Ela passou a ter direitos sobre os seus filhos, compartilhando o pátrio poder.
Fruto de uma emenda constitucional proposta pelo Senado, a Lei do Divórcio (Lei 6.515/1977) permitiu uma profunda mudança social no Brasil. Até então, o casamento era indissolúvel. A maridos e esposas infelizes só restava o desquite — o que encerrava a sociedade conjugal, com a separação de corpos e de bens, mas não extinguia o vínculo matrimonial.
Assim, pessoas desquitadas não podiam casar novamente. Quando voltavam a se unir a alguém, a união não tinha respaldo legal. E os filhos eram considerados ilegítimos, como se gerados em relacionamentos extraconjugais. Além de não terem amparo da legislação, esses casais — que viviam “em concubinato”, segundo o termo jurídico — sofriam preconceito, especialmente as mulheres.
O Brasil acabou sendo um dos últimos países do mundo a instituir o divórcio. Dos 133 Estados integrantes das Nações Unidas na época, apenas outros 5 ainda não o permitiam.
A referida Lei permitiu a mulher a possibilidade de optar, ou não, pelo uso do sobrenome do marido, retirando a imposição da mulher se despersonalizar abrindo mão do próprio nome para adotar o do homem. Substituiu o regime da comunhão universal de bens para o da comunhão parcial de bens, ampliou a equiparação dos filhos, qualquer que fosse a natureza da filiação, para os fins de sucessão hereditária.
Em seu artigo 20 trouxe a presunção de que ambos os cônjuges são obrigados pelo sustento dos filhos acabando com o entendimento de que a fixação da prestação alimentícia está associada à idéia de culpa.
Mas foi a Constituição Federal de 1988 a responsável pela maior reforma já ocorrida no Direito de Família. Além da igualdade de todos perante a lei (garantida no artigo 5º), pela primeira vez foi reconhecida a igualdade entre homens e mulheres, em direitos e obrigações (inciso I do artigo 5º). Nossa Carta Magna afirma, de forma justa, que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher (§ 5º do art. 226). Outro grande avanço foi o reconhecimento como entidade familiar não só a família constituída pelo casamento, mas a união estável entre o homem e a mulher e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226).
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará foi editada pela Organização dos Estados Americanos – OEA em 1994 e ratificada pelo Estado brasileiro em 1995. Este instrumento é de grande relevância, na medida em que foi uma das reivindicações dos movimentos de mulheres durante muito tempo.
A Convenção de Belém do Pará foi o primeiro tratado internacional de proteção aos direitos humanos das mulheres a reconhecer expressamente a violência contra a mulher como um problema generalizado na sociedade.
Em 2002 entrou em vigor novo Código Civil. Até então, era possível se pleitear no judiciário a anulação do casamento em casos onde o marido descobrisse posteriormente ao matrimônio que sua esposa não era mais virgem. Era usado o dispositivo que consta no artigo 1557, I que diz respeito ao erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge.
É importante destacar que a atuação dos movimentos de mulheres promovem mudanças na legislação, na elaboração ou aperfeiçoamento de convenções ou leis nacionais e tem a finalidade de remover obstáculos ao pleno acesso das mulheres aos seus direitos, dentre eles o de viver sem violência. Foi assim que chegamos à Lei Maria da Penha. Compartilho aqui um vídeo produzido pela União Brasileira de Mulheres (UBM), com o apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres que retrata a luta das mulheres no Brasil pela igualdade e o combate à violência contra a mulher.
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) tornou mais rigorosa a punição para agressões contra a mulher quando ocorridas no âmbito doméstico e familiar. O nome da lei é uma homenagem a Maria da Penha Maia, que foi agredida pelo marido durante seis anos até se tornar paraplégica, depois de sofrer atentado com arma de fogo. A Lei estabeleceu que toda mulher tem direito à proteção social e do Estado inclusive contra atos de violência sofridos no ambiente privado ou intrafamiliar.
Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (Lei Maria da Penha)
A Lei 12.015 de 2009 alterou o nome do título no Código Penal de Crimes contra os Costumes para Crimes contra a dignidade Sexual, como uma mudança de paradigma, pois a concepção moral vigente à época se preocupava em tutelar a moralidade doméstica, regulando o recato, o pudor e a virgindade feminina, reduzindo a mulher a um objeto sexual.
A Lei também ampliou o alcance do estupro, pois antes ocorria só contra a mulher e só considerava a conjunção carnal, ou seja, a penetração do pênis na vagina. Atualmente, a vítima pode ser de qualquer sexo e pode ocorrer qualquer ato libidinoso, pois o revogado atentado violento ao pudor foi incluído no estupro, que virou crime de ação múltipla. A Lei também alterou o nome do crime de posse para violação sexual mediante fraude, conhecido como estelionato sexual, em que o agente leva a vítima a uma situação em que ela não consegue resistir e comete ato libidinoso, como exemplo, sedar a mulher com a droga “boa noite Cinderella” ou o médico ginecologista aproveitando da autorização da paciente para realizar exame de saúde.
O feminicídio é o homicídio praticado contra a mulher em decorrência do fato de ela ser mulher (misoginia e menosprezo pela condição feminina ou discriminação de gênero, fatores que também podem envolver violência sexual) ou em decorrência de violência doméstica. A Lei 13.104/15, mais conhecida como Lei do Feminicídio, alterou o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) e estabeleceu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Também modificou a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), para incluir o feminicídio na lista.
Com isso, o crime de homicídio simples tem pena de seis meses a 20 anos de prisão, e o de feminicídio, um homicídio qualificado, de 12 a 30 anos de prisão.
Mas, apesar da legislação, o panorama de feminicídio no Brasil é grave: a cada dia, 13 mulheres são assassinadas no Brasil. Há diversas pesquisas, relatórios e estudos que mostram esse comportamento sistêmico não só no Brasil, mas no mundo.
O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídios no mundo: 4,8 homicídios para cada 100 mil mulheres – de acordo com a Organização Mundial da Saúde. O Mapa da Violência de 2015 que trata sobre o homicídio de mulheres mostra que 106.093 mulheres foram assassinadas entre 1980 e 2013, sendo 4.762 só em 2013. Em 2015 o número diminuiu, mas pouco: 4.621 mulheres foram assassinadas no Brasil, contabilizando 4,5 mortes para cada 100 mil mulheres, de acordo com o Atlas da Violência de 2017.
O Brasil teve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018, aponta levantamento feito pelo G1 com base nos dados oficiais dos 26 estados e do Distrito Federal. São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média.
Número de casos de feminicídio no Brasil cresce 22% durante a pandemia.
O último marco legal que vou trazer para esse post é a Lei do Assédio que criminaliza os atos de importunação sexual e divulgação de cenas de estupro, nudez, sexo e pornografia. A pena para as duas condutas criminosas é prisão de 1 a 5 anos.
A importunação sexual foi definida em termos legais como a prática de ato libidinoso contra alguém sem a sua anuência “com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. A nova tipificação substituiu a contravenção penal de “importunação ofensiva ao pudor”.
A promotora de Justiça, Valéria Scarence, que integra do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, destaca que a nova lei representa o terceiro marco jurídico importante na área de defesa das mulheres, depois da edição das leis da Maria da Penha e do Feminicídio.
“Essa lei surge em razão de duas graves lacunas da nossa legislação que não previa especificamente nem a conduta de importunação sexual, conhecida vulgarmente como assédio na rua, e a conduta de divulgação de cena íntima ou cena de estupro. São fatos de muita gravidade, mas que não encontravam correspondente na lei. Os efeitos já se sentem imediatamente. Já foram feitas várias prisões, toda a população está comentando, então essa lei vem ao encontro do anseio da população”.
Ao terminar esse post confesso que estou com um misto de sentimentos. Vejo claramente que tivemos avanços no Brasil mas os considero pequenos e assustadoramente recentes. Sofro pelas situações suportadas por tantas mulheres - inclusive eu - no passado, no presente e também no futuro. Infelizmente, o Brasil continua sendo um dos países mais perigosos para ser mulher no mundo e isso se reflete no número de feminicídios, de denúncias de violência doméstica, de casos de assédio na rua e assim por diante.
Ter conhecimento sobre os nossos direitos é uma das formas de prevenir e combater a violência de gênero. Espero ter contribuído para essa nossa luta rumo à igualdade.
Referências
Livros:
DEL PRIORE, Mary. Histórias e Conversas de Mulher. 1ª ed. São Paulo: Planeta, 2013.
RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
Sites:
· https://azmina.com.br/colunas/entenda-quais-sao-os-direitos-da-mulher-dentro-da-familia/
·https://www.camara.leg.br/noticias/704329-voto-feminino-foi-conquistado-depois-de-uma-luta-de-100-anos/
·https://www.migalhas.com.br/quentes/274136/em-1932-a-mulher-brasileira-conquistou-o-direito-ao-voto
·https://www.mundovestibular.com.br/estudos/historia/evolucao-historica-da-mulher-na-legislacao-civil
·https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/a-mulher-e-o-ordenamento-juridico-uma-analise-do-tratamento-de-genero-pela-legislacao-civil-brasileira/
·https://www.justificando.com/2018/10/12/das-ordenacoes-filipinas-ao-codigo-criminal-de-1830/
·https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-77/a-convencao-interamericana-para-prevenir-punir-e-erradicar-a-violencia-contra-a-mulher-convencao-de-belem-do-para-e-a-lei-maria-da-penha/
·https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/educacao/a-falta-de-virgindade-da-mulher-nao-e-causa-de-anulacao-de-casamento/51001
·https://www12.senado.leg.br/noticias/especiais/arquivo-s/divorcio-demorou-a-chegar-no-brasil
·https://www.mundovestibular.com.br/estudos/historia/evolucao-historica-da-mulher-na-legislacao-civil
· https://saberes.senado.leg.br/ - Curso Dialogando sobre a Lei Maria da Penha
· https://www12.senado.leg.br/noticias/entenda-o-assunto/lei-maria-da-penha
· https://www.saudeesustentabilidade.org.br/coluna/dignidade-sexual/
· https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/feminicidio.htm.
· https://www.camara.leg.br/noticias/643729-lei-do-feminicidio-faz-cinco-anos/
· https://www.politize.com.br/feminicidio/
· https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/feminicidio.htm
·https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-de-mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml
·https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/06/01/numero-de-casos-de-feminicidio-no-brasil-cresce-22-durante-a-pandemia.htm
Nossa, seu post me trouxe um mar de conhecimento e um oceano de indignação. A gente se ilude muito, mas a desigualdade de gênero está muito longe de acabar. Obrigada!